Intervenção na Sessão Solene comemorativa do 25 de Abril da CM de VN Gaia

A Revolução de Abril faz 35 anos no momento mais difícil, mais dramático, de todo o período constitucional.
Para muitos portugueses, sem emprego, sem trabalho assegurado, com pesados encargos que não têm como pagar, com o espectro da fome a rondar, e tantos a ter de recorrer a instituições de solidariedade social para se alimentarem, com o medo a condicionar os seus gestos, com o desespero a bloquear as suas vidas, as conquistas de Abril parecem um sonho de uma outra era, belas palavras mas já tão distantes e desconexas com o real.
Os índices de delinquência e de criminalidade, em que avultam os chamados crimes de necessidade, crescem de modo preocupante, a violência doméstica, que devia regredir, está a aumentar, a família, como lugar de afectos e fonte de educação, dificilmente resiste a factores exógenos, como a sobreocupação de horários, endividamento excessivo, uma influente cultura mediática dominada pela agressividade, pela irracionalidade, e vazia eticamente.
Este Portugal, ensombrado pela inquietação, de novo temeroso do futuro, é o mesmo em que, há 35 anos, as ruas foram invadidas por multidões, entre abraços, risos, canções, cravos rubros, numa irradiação de desejos felizes, onde se diria que, num momento único, inesquecível para quem o viveu, as aspirações individuais se fundiram com as colectivas.
É natural, então, a pergunta:
- Como chegámos aqui, como foi possível que o grande projecto nacional, que uniu e mobilizou os portugueses há 35 anos, de liberdade, paz, democracia, desenvolvimento, justiça social, se tenha desvanecido ao ponto de parecer envolto em laivos de utopia?
O fio condutor desta breve reflexão parte da aferição da realidade com o que determina a Lei Fundamental da República.
Uma simples amostragem permite comprovar a insanável contradição entre relevantes determinações constitucionais e a política seguida por sucessivos governos e maiorias parlamentares ao longo de mais de três décadas.
Declara a Constituição:
- “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.” De facto, não é formalmente denegado, mas o elevado preço das custas judiciais, ainda recentemente agravada nos escalões mais baixos (e aliviada nos mais altos), afasta da justiça os cidadãos de menores recursos.
- “É garantida aos trabalhadores a segurança no emprego.” Mas é de todos sabido que, apesar das garantias formais e dos incentivos adoptados, a precarização do emprego é cada vez maior, diminui o número de abrangidos pela contratação colectiva, e as imposições do novo Código Laboral tornam ainda mais indefesos os trabalhadores, amiudadas vezes tratados como matéria descartável.
- “Todos os trabalhadores têm direito à retribuição do trabalho...//...de forma a garantir uma existência condigna.” Assim devia ser mas não é, de facto. O que impera são os baixos salários, chegando mesmo a haver muitos jovens, cada vez mais, que trabalham sem receber. Deverá aqui dizer-se que entre 1973 e 75 a parte das renumerações no PIB subiu de 47% para 59%, sendo no ano de 2008 apenas 34%. A falta de visão estratégica que representa tal política é bem espelhada quando altos responsáveis exibem, em selectas reuniões de putativos investidores, no estrangeiro, o baixo nível das remunerações como vantagem competitiva de Portugal.
- “O direito à protecção da saúde é garantido por um serviço nacional de saúde, universal, geral e tendencialmente gratuito.” De facto, há um Serviço Nacional de Saúde, mas todos reconhecerão a falta de meios físicos e humanos, de médicos de família, como faltam investimentos em Centros de Saúde e hospitalares, se encerram serviços de urgência ou maternidades, enquanto ali, mesmo ao lado, nascem clínicas privadas, e como prosseguem os aumentos das taxas moderadoras. Dir-se-á que são muitas as pessoas  isentas dessas taxas mas é sabido que, em Portugal, a pobreza é cada vez maior, não apenas entre os que já não trabalham, mas entre os que trabalham, e cresce mesmo, o que há uns anos era impensável, entre os pequenos empresários.
- “Incumbe ao Estado promover a conciliação da actividade profissional com a vida familiar.” Está na lei e é justo. Mas o novo Código Laboral flexibiliza, permite o alargamento, ainda mais, dos horários de trabalho e a realidade é ainda mais negra do que a lei permite e, assim, os pais estão cada vez mais  distantes dos filhos e entre si.
- “Incumbe ao Estado assegurar o ensino básico, universal, obrigatório e gratuito.” Mas é uma evidência que nunca a Escola Pública, instrumento essencial para o cumprimento desta obrigação do Estado, foi tão atacada, desmotivados os seus profissionais e tão destituída de meios. Bastará lembrar que as despesas das famílias com a educação são cada vez maiores e  que são muitas as escolas em que os pais têm de se cotizar e encontrar imaginosas formas de angariação de fundos, com a colaboração dos professores, para acorrer a despesas correntes.
 Nestes últimos anos acentuou-se uma linha de ataque aos professores, aos seus direitos, e o mesmo aconteceu aos magistrados, aos médicos e enfermeiros dos serviços de saúde, e aos funcionários públicos em geral, como se fossem detentores de supostos privilégios e regalias e, como se fora coisa horrenda, de “empregos vitalícios”.
 O propósito oculto desta campanha, que teve altos responsáveis como porta-vozes, não é o de promover a equidade, é o de nivelar por baixo, não é o de atribuir direitos a quem não tem, mas de os tirar a quem legitimamente os tem e conquistou.
 Por isso, estiveram na rua, a par de outras grandiosas manifestações de trabalhadores, as maiores manifestações de sempre de educadores e professores. Tal não obstou a que se prossiga com a mentira, talvez na esperança de que, à força de a repetir, se torne verdade, de que os professores não eram avaliados e que todos ascendiam ao topo da carreira. É uma flagrante mentira, porque o que está em causa não é a avaliação mas um novo modelo de avaliação que se pretendeu impôr.
- É um princípio inscrito na Constituição “a subordinação do poder económico ao poder político democrático.” Formalmente assim acontece e é vital que assim seja, pois se trata de um princípio basilar de um Estado democrático e garantia primeira de protecção do bem público e de defesa da soberania nacional.
 Mas, a continuada alienação de participações do Estado nos sectores estratégicos da economia para realizar ganhos de conjuntura, a abertura à livre concorrência das áreas de serviço público, a permissividade em relação à especulação bolsista e às evidentes irregularidades e ilegalidades que minavam o sector financeiro, o critério do Governo de salvar banqueiros falidos à custa dos contribuintes, a condescendência com grandes empresas privadas que prestam serviço público, em áreas como a energia e a água, que obtêm lucros desmedidos à custa de elevados preços e tarifas, certos encerramentos de empresas e despedimentos colectivos sem controlo, são expressão de como o poder político, invocando mal as regras do mercado, age com fraqueza onde havia de mostrar firmeza, cede aos grandes em desfavor dos pequenos, que são a grande maioria.
 Não está em causa a iniciativa privada, que tem um lugar insubstituível na actividade económica, mas é preciso assegurar sempre o primado do interesse público e que o Estado mantenha capacidade de regulação e de intervenção nas áreas dos sectores estratégicos e dos direitos sociais que lhe está cometido proteger.
 Poderíamos prosseguir este apuramento sobre a inconformidade entre princípios, direitos e deveres inscritos na Constituição e a prática política dominante. Assim como poderíamos abordar outras matérias como as liberdades democráticas, cada vez mais restringidas de facto, ou a soberania nacional, cada vez mais amputada por força das imposições de Bruxelas. Repare-se que em matérias nucleares para a nossa organização colectiva e para o devir histórico como nação independente, nunca o povo português foi chamado a esclarecer-se e a manifestar a sua vontade, e ainda agora, depois de prometido, foi-lhe denegado o direito de se pronunciar em referendo sobre o Tratado de Lisboa.
 O que está claro é que as orientações dominantes resultam da agenda neo-liberal, em que o mercado se sobrepõe à política. Mas a política deve considerar a existência e o funcionamento do mercado mas não submeter-se ao mercado. A prioridade deve ser dada à satisfação das necessidades básicas da população, à promoção do desenvolvimento e não à acumulação desmesurada do lucro. Está no neo-liberalismo, no quadro da globalização financeira, uma das principais causas da grave crise internacional.
Em Portugal, a crise estava há muito instalada, é de natureza estrutural e resulta da incapacidade de sucessivos governos em definir uma estratégia de desenvolvimento que sirva os interesses nacionais.
O que está claro é que na raiz dos grandes problemas que hoje vivemos não está o cumprimento mas o incumprimento da Constituição, não está o respeito mas o desrespeito da Constituição.
Vivemos um momento crucial para a democracia e para o futuro do nosso País.
Um momento de inquietação e desânimo para muitos portugueses que sofrem os efeitos de uma crise criada pelos poderosos, e de que os poderosos pretendem sair incólumes ou até beneficiados. Com o desemprego a subir em flecha, a penúria a entrar em tantos lares, não é com medidas assistencialistas  que se resolvem os problemas. Acudirão a alguns casos limite mas não comportam, em si, a alternativa necessária para criar e melhor repartir a riqueza.  
Para vencer esta difícil situação é necessária uma ampla reflexão colectiva e uma convergência que rompa com tais orientações, para que o País volte aos caminhos de liberdade, progresso e justiça social, caminhos abertos em 25 de Abril.
Hoje e aqui gostaríamos de endereçar uma saudação ao Professor Óscar Lopes para lhe dizer, para vos dizer, que continuaremos a luta, como nos versos de Sophia de Mello Breyner, “por um País liberto, por uma vida limpa, por um tempo justo”. 
 
Jorge Sarabando

25.Abril.2009